livro como prato

October 23, 2010


«Quando ela tinha treze anos, o próprio pai levou-a à cidade para a meter num convento. Pararam num albergue do bairro Sain-Gervais, onde a ceia foi servida em pratos pintados, representado a história da menina de La Vallière. As legendas explicativas, esgarçadas aqui e ali pelos riscos feitos pelas facas glorificavam a religião, a delicadeza de sentimentos e as pompas da Corte.»

A frase «a ceia foi servida em pratos pintados» provocou-lhe um sorriso fatigado: «Deram-lhes os pratos vazios? Deram-lhes a comer a história dessa La Vallière?» Que cínico! Julga-se à margem da leitura. Nada disso, a sua ironia acertou em cheio, pois os males simétricos dela e dele, resultavam disso: Emma era capaz de olhar um prato como um livro, e ele o livro como um prato.

Assim escreve o autor à paginas tantas deste livro, neste capitulo sobre um rapaz que esforçadamente tenta fazer a ficha de leitura para a escola a estória de Emma Bovary (bem, talvez um dia vos fale também desse, mas não hoje)…

Não chegamos a saber se o jovem consegue acabar o livro para fazer a ficha de leitura, ou se porventura a copiou de uma das colegas no dia seguinte antes da aula.

O que o autor nos conta mais à frente é a sua introdução ao Guerra e Paz, num capítulo a que dá o nome O direito de saltar páginas, o segundo da IV (quarta) parte do livro. Ora vejemos, sendo que esta é a terceira ou quarta vez que também me apetece ler o livro, a segunda com este nas mãos:

Li pela primeira vez Guerra e Paz quando tinha doze ou treze anos (talvez treze, estava na 5ª classe e já bem para o final).

Desde o início das férias que via o meu irmão (o mesmo de La Mousson) enfronhar-se neste enorme romance e o seu olhar tão longínquo como o de um explorador que desde há muito deixou de ter saudades da terra natal.

– É assim tão bom?

– É óptimo!

– É a história de quê?

– Duma rapariga que gostava dum fulano e que casou com outro.

O meu irmão sempre teve o dom do resumo. Se os editores o contratassem para redigir as «contracapas» (aquelas patéticas exortações à leitura que se chapam nas contracapas dos livros), poupapvam-nos muito arrazoado inútil.

– Emprestas-mo?

– Dou-to.

Eu estava num colégio interno e portanto o livro constituía um presente inestimável. Dois grossos volumes que me acompanhariam durante todo o trimestre.

O meu irmão, cinco anos mais velho, não era propriamente idiota (aliás, também não veio a sê-lo) e sabia perfeitamente que Guerra e Paz não se podia resumir a uma história de amor, por muitas voltas que se lhe desse. Mas ele conhecia a minha queda por sentimentos inflamados …

Mas isto é apenas a introdução para depois dizer que:

Saltei páginas, sim, saltei!

E mais do que isso, aconselhar todos os miudos a fazer o mesmo.

Eu não poderia concordar mais com ele.

Eu próprio saltei muitas vezes páginas em muitos livros.

Lembro-me especialmente de saltar todas aquelas descrições mais ou menos cientificas de peixes reais e imaginários que podemos encontrar nas 20 000 léguas submarinas, que eu saltei, mas que hoje me apetece ler. Quando for a casa da minha mãe tenho que trazer esse livro. Na altura peixes era coisa que pouco interesse me despertavam, mas entretanto visitei o oceanário, o aquário Vasco da Gama, montei o meu primeiro e o meu segundo aquários, e peixes é um assunto que me interessa muito mais.

O livro de que retirei as citações acima, e que muito me permitiu divagar (apesar de não tão devagar assim), chama-se Como um Romance, da autoria de Daniel Pennac. É um livro, especialmente escrito sobre o Direito de Não Ler.

No Comments

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *